Emenda à MP da Eletrobras acelera abertura ampla do ‘mercado livre’ e pressiona governo
A medida provisória de privatização da Eletrobras, aprovada no Senado e que pode ser referendada hoje pela Câmara, garante a total abertura do mercado livre de energia, formado hoje só por grandes consumidores, até julho de 2026. Uma emenda do senador Wellington Fagundes (PL-MT) acelera ainda as etapas de adesão dos pequenos consumidores ao ambiente que permite escolher de quem comprar a energia.
Atualmente, o mercado livre beneficia indústrias, shoppings e supermercados com demanda acima de 1,5 megawatt (MW). Respondem por 35% do consumo do país. Grande parte está no mercado cativo, das distribuidoras reguladas pelo modelo de tarifas.
Fagundes destaca que o mercado livre no Brasil atende a “apenas 20 mil de suas mais de 86 milhões de unidades consumidoras”.
O governo tem um plano – ainda inacabado – de abertura do mercado. Nele, os consumidores com demanda superior a 1 MW serão contemplados em 2022, e aqueles com mais de 500 quilowatts (kW), em 2023.
Nesse planejamento, os clientes com consumo inferior a 500 kW, como pequenos e médios comerciantes e residências, têm a previsão de migrar a partir de 2024 para o mercado livre, mas as regras não foram definidas.
Os estudos da última fase são de responsabilidade da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Se não ficarem prontos, o Ministério de Minas e Energia pode simplesmente adiar a etapa final por meio de portaria.
A emenda repercutiu no setor já no dia seguinte à aprovação da MP no Senado. A Aneel – por coincidência, ou não – abriu tomada de subsídios sobre o acesso dos pequenos consumidores, com dez questionamentos sobre o tema.
O mercado livre surgiu em 1995 e, em 2017, o ministério fez um amplo debate com entidades e consultorias especializadas, por meio de consulta pública sobre a modernização do setor, a CP 33.
No Congresso, uma proposta de abertura se arrasta há cinco anos. É o projeto de lei da portabilidade da conta de luz (PL 414/21), em referência à liberdade de escolha no sistema bancário, na telefonia, em planos de saúde.
As incertezas sobre as mudanças dividem especialistas. Para os entusiastas, elas trarão maior competição e benefícios para o consumidor final. Para os críticos, isso desorganiza o setor e traz riscos para a segurança energética.
Na equipe econômica, a emenda foi bem recebida por Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia. A aprovação da MP teria sido vitória em dose dupla.
“Não só nos permite privatizar a Eletrobras, como liberaliza o setor elétrico. Até 2026, todos os consumidores poderão escolher seu fornecedor de energia elétrica: com 25 anos de atraso, o setor elétrico brasileiro será privado e livre!”, comemorou Mac Cord, no Linkedin. O posicionamento gerou expectativas de sanção da lei sem veto do presidente Jair Bolsonaro à emenda.
O presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Reginaldo Medeiros, criticou a quantidade de emendas com conteúdo alheio ao texto original, os “jabutis” da MP da Eletrobras. A queixa, porém, não se aplica aos ajustes em prol do mercado livre.
“O Senado foi muito feliz ao incluir o dispositivo. Pousou uma ‘andorinha’ na árvore de ‘jabutis’”, disse Medeiros. Para ele, o governo sabe quais medidas adotar e só falta colocá-las em prática.
Medeiros defende que o mercado livre puxa a expansão da oferta, principalmente com energia renovável, e precisa de mais clientes para aquecer a competição. Ele lembrou que o potencial deste mercado já desperta o interesse de bancos, como Itaú e Santander, que já têm as próprias comercializadoras de energia para marcar presença.
Mais cauteloso, Maurício Tolmasquim, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), avalia que a liberalização sem estudos traz três preocupações: riscos à segurança do sistema, criação de passivos e o que ele chama de “espiral da morte” – quem ficar no regulado pagará fatura de energia cada vez mais alta.
“A migração para o mercado livre está muito ligada à ideia de empoderamento dos consumidores e de soluções ‘tailor-made’ [sob medida]. Do ponto de vista conceitual, sou favorável ao direito de escolha do consumidor. Mas, sem planejamento aprofundado, corre-se o risco de sofrermos com uma grande desorganização”, disse o professor da UFRJ.
Quanto à segurança, Tolmasquim lembra que o mercado regulado sustentou a expansão da geração nas últimas duas décadas, graças a contratos de longo prazo. Ao garantir receitas futuras, o modelo viabilizar o financiamento.
Para Tolmasquim, a preocupação está em haver um descasamento entre oferta e demanda. Recentemente, disse, o mercado livre apoiou a ampliação de parques eólicos e solares, mas não conseguiu ancorar sozinho nenhuma grande hidrelétrica ou térmica, importantes para operação segura.
Sobre o risco de passivos, o ex-presidente da EPE lembra que existem quase 50 mil MW médios contratados no ambiente regulado e o “último megawatt” fica sem contrato somente em 2054. Se houver uma grande migração, as distribuidoras ficariam com sobras enormes de energia e surge um passivo. Esse excedente pode mudar de mãos, mas a precificação ensejaria discussões. “Alguém vai pagar o mico”, diz.
O risco de “mico”, para distribuidoras ou consumidores remanescentes, poderá ser mitigado com mecanismo acolhido pelo relator da MP, Marcos Rogério (DEM-RO). O texto final atenua os prejuízos com a sobrecontratação de energia no mercado regulado, ao estabelecer que quem migrar para o ambiente livre pagará um novo “encargo tarifário” cobrado na proporção do consumo.
Sobre a “espiral da morte”, Tolmasquim refere-se ao temor de que muitos consumidores permaneçam com as distribuidoras por falta de interesse ou de entendimento. Para ele, há uma população que ninguém prioriza atender – especialmente na baixa renda, áreas rurais ou quem tem histórico de inadimplência.
“Até nos países mais liberalizados existe uma supridora de última instância”, afirma Tolmasquim. O risco é sobrar, no ambiente regulado, apenas a fatia mais ineficiente do mercado, com custos mais altos e tarifas maiores.
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